Eu apostei nesse filme como o melhor de 2006, e acho que não errei...muito. Não sei se é o melhor, mas é um dos melhores, sem dúvida. Engraçado como eles mudaram MUITA coisa do livro, e ao mesmo tempo mantiveram muita coisa também. Os irmãos Nolan alteraram radicalmente a estrutura, mudaram a moldura da trama, modificaram alguns eventos, algumas personagens...enfim, jogaram as coisas de pernas para o ar. Mas ficou excelente, e fiel no que importa.
A moldura do livro é a seguinte: há uma narração no presente, envolvendo os descendentes de Angier e Borden, conduzida pelo filho de um deles, que se encontra com a filha do outro. Nessa narrativa são encaixados dois diários. Primeiro o de Borden, depois o de Angier, em blocos completos. Depois há uma resolução no presente. O Priest escreve muito bem, e você tem um sentimento de cumplicidade muito grande primeiro com o Borden, depois com o Angier. Os dois se colocam como vítimas, e narram a história de forma pouco confiável, mas no final quem vence e surge como mais honesto é o Angier. No filme, os Nolan eliminaram essa moldura em favor de outra, mais complicada (e mais banal), envolvendo o julgamento do Borden pela morte do Angier. Na prisão, Borden tem acesso ao diário de Angier, e no diário de Angier, Angier por sua vez escreve tendo acesso ao diário de Borden. Há um diário dentro de um diário, flashbacks dentro de flashbacks, e comunicação direta entre ambos, por um artifício muito bem bolado que seria spoiler dizer. Desta maneira, os Nolan embaralham os dois blocos do livro e fazem um picadinho interessantíssimo. O truque das argolas, repetido algumas vezes no filme, representa bem a estrutura do roteiro. Que também replica a estrutura em três atos do número de mágica, narrada por Cutter no começo e no final do filme.
Eu sei que muita gente vai sair reclamando do filme por causa do final, mas no fundo The Prestige é ele mesmo um número de mágica cinematográfica, brilhantemente construído. Reclamar do final é cair no truque dos Nolan e confirmar a moral da história: segredos simples são difíceis de se acreditar, mas os complicados são difíceis de se aceitar. As pessoas acabam preferindo os simples, mesmo os intuindo, já que o que importa é acompanhar o número e se deixar deleitar por ele. Deleite por deleite, eu sinto dificuldades para acreditar que alguém não se sinta deleitado com este filme, pelo menos até o final. Prende tanto a atenção que você praticamente cai da poltrona, se aproximando inconscientemente da tela. E basicamente é essa a moral de The Prestige. É possível argumentar que seja um filme vazio, mas não é. The Prestige é um filme-tese quase irretocável, e a tese é interessante e não se aplica apenas a filmes ou números de mágica.
Em relação aos problemas...se os Nolan desconstruíram o livro de forma inteligente, a ordem do livro (e sua moldura) também tinham uma função importante, que acaba sendo perdida no filme. O prestige do número de Borden é simples, beirando ao ridículo, mas fácil de se aceitar. O prestige do número de Angier é mais complicado, requer uma dose extraordinária de suspensão de descrença, e é portanto mais difícil de se engolir. O livro lidava com isso muito bem. O prestige de Borden é revelado no final, depois de pouquíssimas pistas, e me pegou de surpresa. O prestige de Angier não tem muito mistério já a partir de mais ou menos a metade do diário de Angier, e vai sendo introduzido com cuidado, de modo que o leitor tem mais facilidade de aceitá-lo. E também consegue entender melhor o que se passava pela cabeça de Angier, que é um sujeito bem mais interessante e complexo no livro do que no filme.
No filme, os Nolan decidiram colocar uma pista sobre o prestige de Borden em praticamente TODAS as cenas em que ele aparece, e algumas em que ele não aparece. Are you watching closely?, a frase que é repetida várias vezes no filme, é dirigida à audiência. Eu vi o filme já sabendo o segredo de Borden, mas imagino que se não soubesse teria adivinhado facilmente, o que tira um pouco do impacto. Tudo bem que os Nolan querem provar algo com isso, mas dava para cortar metade das trocentas pistas. Se você estiver "watching closely", vai adivinhar com certeza. Já o prestige do truque de Angier é introduzido subitamente demais. Cai do céu, quase que literalmente, e por ser tão radical, fica um pouco chocante demais.
De qualquer maneira, verei de novo pelo menos mais uma vez no cinema, e comprarei o DVD. Se não é o melhor filme do ano, vai ser difícil encontrar um mais inteligente.